segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Em tempo de máscaras.

Mascarados de cidadãos, mentem a si próprios; não os consegue descrever de outro modo. Ali ou pelas ruas, manada a galope matinal ou em bichas vespertinas de matadouro, ombros vergados, o maldito autocarro sem chegar e eles desejando o aconchego cinzento da casa em dormitório dos subúrbios. E para quê? Uma côdea em frente do televisor, chinelam rumo a leito de casal que o não é há muito, barrigas obscenas por abuso de cervejas e gravidezes. Vegetam.
Patéticos. De tão repetitivos, foi necessário arranjar-lhes rótulo que a todos incluísse: o povo, habitando o país real. Sorriu. O povo… E os seus ditados cretinos, a democracia conseguida a pulso, o voto como arma, tudo por arrastamento de palavra que enche de orgulho o peito de imbecis mascarados de cidadãos. Cidadãos? Seria preciso reconhecer-lhes primeiro o direito de se intitularem pessoas. Afinal que ambiciona essa gentinha? Electrodomésticos e carro novos a prestações, férias empacotadas no Algarve ou em Tenerife, casar bem as filhas. Diz-se que Marx tinha a mesma preocupação... Ideia peregrina a dele, revolucionar o mundo a partir desta mole que apenas ambiciona manjedoura quotidiana mais confortável e algum dinheiro no banco. Que os ricos acumulam e a nobreza falida recorda. Pormenores. Exibem as máscaras nas revistas sociais, comem e vivem melhor, mas a espessura mental é a mesma, não passam de povo a fugir do povo.
O anfitrião, serviçal,
- Quando quiser…
O teatro-circo cheio, a turba fazendo voltear as bandeiras, música exaltante que inebria corações e os junta na crença de que tudo é possível quando se marcha atrás do homem certo que a Providência escolheu.
Começou ameno, voz baixa e sorriso cúmplice,
- Amigos…
O toque local, cai sempre bem, fá-los sentir especiais,
- Sabeis que sempre aqui me senti em casa…
Um discurso equilibrado, as múltiplas promessas intercaladas por dois ou três avisos responsáveis,
- Tempos difíceis, há que reconhecê-lo…
E o passe de mágica,
- Mas temos soluções para os problemas…
As farpas clinicamente distribuídas, evitando aparentar quebra da necessária solidadiedade nacional,
- Nós, pelo contrário, não cultivamos a arrogância, colaboraremos com todos sem excepção de uma forma construtiva…
A afirmação de desapego,
- Não desejamos o poder pelo poder, mas sim para servir o país, seria mais fácil cruzar os braços…
As promessas finais, que amarram de tão concretas,
- No dia seguinte à eleição será lançado o concurso da nova ponte e a primeira pedra do Centro Social…
O reconhecimento humilde, o futuro nas mãos deles,
- Mas respeitaremos a vossa decisão livremente expressa…
A apoteose com hino e v de vitória,
- Obrigado, o vosso apoio dá-me forças para continuar…
Um momento de repouso no camarim antes do regresso ao hotel. O jovem com planos de futuro, obsequioso,
- Deseja uma bebida? Um discurso galvanizador, aqui está no papo…
Com receio de parecer modesto nas previsões,
- Aqui e em todo o lado, já ganhámos!
Palmada solidária nas costas e a prova do ascentismo que assenta como luva aos predestinados,
- Apenas um copo de água.
O último estímulo,
- Não se esqueça de dar o número do seu telemóvel à minha secretária.
Os barões da terra esperando fora para o cumprimentar, portadores da lista de benesses para a manhã seguinte ao triunfo, todas indispensáveis ao bem estar do povo. (Indispensáveis também eles para as levar à prática; o costume.) Prometeu-lhes tudo; o costume.
Uma leve repugnância entediada, porquê toda aquela penosa liturgia, o cheiro a suor, as sardinhas e o vinho tinto, as criancinhas e as suas lambuzadelas, os quilómetros. Felizmente as campanhas vão-se aligeirando, as frases mais apelativas programadas para os telejornais das oito, os peritos aperfeiçoando imagem e palavras de ordem, mas ainda tanto desperdício de tempo! Precioso, para obter consensos e conseguir alianças nos corredores onde a decisão do povo é decidida e se escolhem as sondagens que a influenciarão.
Mascarados de cidadãos e pessoas. Todos. E sem o perceberem, máscara e mentira agradam-lhes, gostam de se olhar no espelho e pensar que são alguém e a sua opinião importa. Sobrevivem rastejantes ao quotidiano, mas afirmam com orgulho que à boca dar urnas todos somos iguais e nos equivalemos, como na morte. Os pobres diabos…
Também olhou um espelho. Sorriu agradado, apesar de algum cansaço o aspecto era bom. E máscaras nem vê-las!, os actos falariam por si e pela sua coerência. Nada a esconder e de nada se escondendo - o rosto nu de um político fidedigno que a multidão de mascarados leva ao poder.

20 comentários:

Anónimo disse...

oopppssss... mas, onde achar outro povo?

Anónimo disse...

exageros … de outros povos ;)

“Pião” de Geir Campos

“Quem te ensinou, pião, a simples arte
de girar e fazer do giro a vida,
vertical sobre o bico – único ponto
de teu corpo, no chão, a suportar-te?
Essa a tua verdade essencial:
como um homem cercado de mentiras,
buscas talvez em torno uma saída
que não achas; e assim debalde giras
num equilíbrio falso, que afinal
se rompe… e ao chão te entregas, todo, tonto.”

maloud disse...

O "povinho", a classe média, o "jet-set" pindérico, todos irmãos, todos iguais e todos cretinos.
Não supõe o favor que me fez. A mim chamam-me elitista e até um pouco snob. Há dias, num blog, já era o pseudónimo da MªFilomena Mónica, só que menos amarga. Ah! Alguém lembrou que uma era de Lisboa e a outra do Porto. Agora vou imprimir e quando saltar, salta sempre, elitista ou snob, mostro e digo o autor. Ninguém se atreverá a classificá-lo assim.
Obrigada

peciscas disse...

Pois!
Mas aposto consigo que, quem quer que leia este excelente texto, não enfiará a carapuça, perdão, a máscara.
Cada um de nós está sempre convencido de que é diferente dos outros e que passa ao lado da sua mediocridade.
É assim na estrada.
É assim no trabalho.
E é assim na política.
Por isso, qulquer um desses a quem retratou, ao ler as suas palavras, só diria:
- É claro que há muitos que serão assim. Mas eu não. Eu estou cá para servir...

Anónimo disse...

Mas quem tem culpa que assim seja ? Os camelos ou aqueles que tudo fazem para que continuem a haver camelos ? Ou seja: o que nasceu primeiro - o ovo ou a galinha ?

Nos entrementes, Marx teve o condão de fazer com que alguns camelos passassem a ter a noção de que o eram...

LR disse...

Géricault.
Já ontem, ao ler o post do benfiquista-mor, perseguindo, não a talho de foice, mas a talho de grã- naifadas, o portista Sousa
- numa metáfora sobre a sagrada intimidade, hoje incompreensível, entre o senhor da terra e os seu rendeiro
(leia-se caseiro, em terras do norte) -,
me lembrei do mesmo.
Entre o riso contido que a cena me provocava, ia ilustrando mentalmente aquele acesso declarado de loucura (honrado de foros de perigosidade pública) com a recordação dos quadros Géricault.
E hoje, a mesma coisa!
«Ali ou pelas ruas, manada a galope matinal ou em bichas vespertinas de matadouro, ombros vergados, o maldito autocarro sem chegar e eles desejando o aconchego cinzento da casa em dormitório dos subúrbios. E para quê? Uma côdea em frente do televisor, chinelam rumo a leito de casal que o não é há muito, barrigas obscenas por abuso de cervejas e gravidezes. Vegetam.»

Belo quadro, digno dos traços de Géricault, o pintor dos loucos…
Será o que todos são ( e somos) hoje em dia?...
Era ele quem dizia:
"Passo todo o tempo a surpreender-me com o facto de que nada parece sólido, tudo me escapa. As nossas esperanças e os nossos desejos, e mesmo os nossos sucessos, sâo apenas ilusões. O meu coraçâo nâo pode encontrar descanso, contém memórias demais".
Pintor da fealdade? Qual quê!
De facto, como Rodin dizia " O feio na arte é tudo o que é falso".

Belo post, Professor!
Ou é você que pinta muito bem com as palavras, ou eu que sofro de excesso de cinestesia.
Não leve a mal a minha desconversa.

Anónimo disse...

"Sobrevivem rastejantes ao quotidiano, mas afirmam com orgulho que à boca das urnas todos somos iguais e nos equivalemos, como na morte. Os pobres diabos…" Queira desculpar-me Professor, mas não era este, entre outros, o grande slogan do vinte e cinco de Abril?! E não me venham falar mal do povo! Afinal quem somos nós (ou eles - políticos) senão o povo? Ou teremos a arrogância de pensar que os analfbetos são os outros, que os vendidos são os outros. Achei piada ao primeiro comentário deste post! a sério que achei! Como se uns tostões a mais ou umas letras a mais nos distanciassem do povo. Daquele Povo que Camões enalteceu.. corajoso, aventureiro, sem medo (talvez desse estejemos a milhões de léguas).
Em tempo de máscaras, atire a primeira pedra aquele que nunca as usou.

Bom dia, Professor

Anónimo disse...

...a verdade exposta
um abraço

andorinha disse...

Bom dia.
Concordo com o Peciscas e o Fora de lei.
Primeiro achamos sempre que a carapuça só serve aos outros, muitas vezes fingimos que não vemos que ela também nos serve a nós.
Depois, tal como o Fora da lei também pergunto: de quem é a culpa?
Dos camelos ou daqueles que tudo fazem para que continuem a haver camelos?
Do povo ou de quem o mantém manietado?
Ficam aqui apenas as perguntas.

Até mais logo, gente.:)

noiseformind disse...

O Comité para a Verdade Histórica do Murcon (COPAVHIMUR) gostaria de assinalar que esta é uma preciosa velharia e não "apenas" um textozinho de blog. ; ))))))))))))))))))))))

Boss,
Ontem estive no Palácio Hotel a comemorar o Carnaval e o duo que fez a festa de meio para o fim tocou as mesmas músicas que tocaria num qualquer casamento de classe média (APita o Comboio, Oh Laurindinha, etc). Portanto, como são tão parecidas, as classes têm necessidade de uma maior afirmação de diferença por outros meis exteriores. Não lhes chames povo, afinal que experiência tens tu (ou eu, já agora) de viver com um salário mínimo em casa? ; ))))))))) Convém sempre ter isso em mente quando falámos dos cinzentos, que nós com os meios deles não seríamos se calhar muito diferentes.

E com isto me fico (e me venho!!!!) ; )))))))))

A Menina da Lua disse...

"Feios, Porcos e Maus..." de uma forma ou de outra todos temos um pouco...:)

Os Humanos na sua vida evoluem e vivem muitas vezes no limiar não só da sua própria sobrevivência mas tambem entre o sentimento de enorme incapacidade de serem eles próprios o que os pode levar a assumir "Máscaras" com todas as consequências que isso implica; agressividades, demasiada passividade, medos e bloqueios etc. etc. que os psis conhecem:)

Como podemos constatar na História do Homem, ele tanto é capaz de ser criador de actos de enorme agressividade e crueldade como elevar-se a actos altruistas onde a Beleza e o Amor são a sua maior expressão...

Contudo agrada-me e é esperançoso acreditar na teoria que o ser humano no essencial nasce "programado" para ser "feliz", caso tivesse a sorte de viver em sistemas ecológicamente equilibrados...:)))

Vera_Effigies disse...

Um quadro que nos define a todos pela passividade.
Povo é o miolo do país é quem cria para a vida e a alimenta. Não o subestimemos.
O trabalho absorve grande parte do tempo que poderia dedicar a mudar isto. O despertar numa mesa sem pão, acorda o animal que amarfanha a cada fatia que tem faltado. Confio no povo que se acha aquem da mudança e confia naqueles que criou para a luta.A descoberta da traição pode trazer danos irreparáveis.
Jet set é o parasita do povo, como fungo que é cresce e abafa-o.
Falte o pão e veremos quem manda e o repõe no seu lugar.
A Patuleia já o demonstrou por outras razões, mas hoje poucos sabem história.
MJ

Julio Machado Vaz disse...

Maralhal,
Cuidado com as extrapolações, o que está no texto é a opinião de um político sobre a carneirada que - na sua óptica... - o elege e que despreza objectivamente. E não a minha:). É um retrato dele, através do que os seus olhos "vêem" e a sua cabeça decreta.

Vera_Effigies disse...

Noise
Eu sou do povo e não sabes o orgulho que tenho de sê-lo.
Um abraço a todos
MJ

CêTê disse...

Por algum motivo um comentário meu não foi publicado :((((((
Logo naquele que eu revelava o segredo mais bem guardado do século além de revelar também a múltipla identidade de Maria!
Esféricos! Isso não se faz!

;]

Anónimo disse...

Julio Machado Vaz 4:33 PM

"Maralhal, cuidado com as extrapolações, o que está no texto é a opinião de um político sobre a carneirada..."

Professor, não me diga que "postou" a opinião do artista que, na passada semana, acompanhou o Bimbo da Bosta à Comissão de Arbitragem da Liga ? Ou preferiu "postar" a opinião da rapariguinha que, há cerca de três semanas, levou os seus conterrâneos a passear a Fátima para cumprirem todos um solene agradecimento ? Bem, vistas bem as coisas, também poderia ser a opinião do Sócatrás. Who knows...?

Vera_Effigies disse...

Mahatma
Eu sabia que não podia ser o senhor a escrever tal alarvidade. Apenas como povo que sou senti prurido :)))
Que somos todos senão povo?
Em que lugar se situa essa criatura?
Quem escreve isso quer incendiar o povo para causas suas.Chama povo a aproveitadores de ocasião, a "travestis".
Povo que o é não se vende. Vive uma vida de trabalho sem ter esses passatempos, por falta de tempo mesmo! Aproveita cada pedaço de tempo, como pão, para usufruir o mínimo da vida em coisas que, para esse senhor são de "bestas", mas que o alimentam e lhe dão(a ele senhor) tudo aquilo de que fala e tempo para escrever sobre...... Deus deve tê-lo dotado de uma língua avantajada e multiusos com a qual faz os seus trabalhos e tem projecção até para escrever barbaridades descrevendo-se.
MJ

Anónimo disse...

O Povo:

"Canudo em Engenharia da Treta, MBA em tráfico de influências, o Povo, não olha meios para obter os seus fins."

O Povo é juiz, arquitecto, treinador,(...), pensador.

Veja-se o urbanismo feito nas últimas décadas; o ambiente à volta do futebol; as Fátimas; a condução nas estradas; o resultado dos referendos; os pimbas. Enfim, o Povo. No país do Cungagal.

Pamina disse...

Boa noite.

Só tive oportunidade de ler agora, mas ainda queria dizer que gostei muito deste texto.
Espero que nem todos os políticos portugueses sintam este desprezo pelo "povo", mais do que isso, acredito que nem todos são assim, mas tenho também a certeza que nenhum enfiaria a carapuça se lesse o post.
De repente passou-me pela cabeça uma "line" dum filme no qual já não pensava há imenso tempo. O post deve tê-lo feito sair do meu subconsciente. Robert Redford, no "Candidato", jovem, belo, a dar apertos de mão e a dizer: "My name is Bill McKay..." O poder, ou mesmo apenas a possibilidade de o alcançar, pode corromper (com alguma culpa da engrenagem) o mais idealista.

maloud disse...

A opinião do político não podia ser outra. Nós somos isto.